Tawé Fraternidade e Amazônia

Se, de um lado, precisamos cuidar e preservar a Amazônia física e biológica, celeiro das maiores riquezas e alimentos, a maior biodiversidade da Terra, a maior reserva de água, de floresta e de vida do nosso planeta, precisamos, por outro lado, cuidar da Amazônia humana e cultural, que abriga a experiência de povos que são as maiores referências, reservas e exemplos de uma vida de fraternidade, de amor, partilha e solidariedade.

Os territórios indígenas não podem ser invadidos, os povos indígenas não podem desaparecer. Há olhares gananciosos mirando as suas terras. Elas são férteis, têm minérios, árvores centenárias, animais cobiçados. Os seus rios são fartos, suas águas são pródigas e generosas.

E os olhares cobiçosos e vorazes, esses olhares não-índios, não sabem e não conseguem entender (pois que acabaram de pousar sobre a mata, eles acabaram de chegar, eles nunca cuidaram daquelas terras) - como sabem e entendem aqueles que há milhares de anos cuidam delas -, que a terra é sagrada, que o rio é sagrado, que os animas são sagrados. Que a vida é sagrada. Eles não sabem. Eles não sabem que a terra não é um objeto a ser explorado, a ser sugado, eles não sabem que ela é um ser vivo, que ela é a Terra/Mãe. E, assim, eles não são capazes do cuidado e do respeito, eles arrancam, eles derrubam, agridem, eles depredam, eles violentam a terra, o rio, os seres. Eles matam. Eles não sabem que estão matando a si próprios.

Há riquezas materiais na mira deles e essas riquezas materiais não podem destruir a riqueza espiritual que ali existe.

Que a vida e a espiritualidade maravilhosas que habitam a Amazônia nunca se percam, mas cresçam e floresçam cada vez mais!

Vida e Missão neste chão, Missão que o Senhor nos confiou: preservar a vida, cuidar da vida, fazer que ela seja cada vez mais vida, vida em abundância - Fraternidade e Amazônia.

Trecho do livro


É madrugada ainda. É escuro ainda. Chove. Chove muito. Frio. Faz muito frio, um frio de cortar. Está gelado. Estamos no inverno amazônico - são seis meses de chuvas torrenciais. E frio. Eles não têm grandes coisas para proteger o seu corpo, eles partem quase nus. Mas estão agasalhados pelo Espírito, recebem o calor do Pai. É preciso mais?

Os seus filhos têm fome e é preciso partir. O rio está agitado sim, há ondas ferozes sim, e suas canoas são pequeninas. Embora eles sejam os mestres-canoeiros - eles são os "Cortadores de cabeças", os Munduruku, os Monjoroko, os "filhos-do-sol" e os "filhos-da-lua" - há risco de naufragarem, sim. Mas eles sabem, sem dúvida, que "o maior naufrágio é não partir" - eles sabem, sobretudo, que a única morte é não viver. E eu aprendo com eles.

Ao partirem, um gesto de reverência e agradecimento à vida e um pedido de licença aos espíritos que habitam os animais que irão abater, para que eles dêem permissão para serem transformados em alimento, em alimento para seus filhos, para sua aldeia. Se vão colher, também, uma árvore para esculpirem uma canoa, há que fazer uma roda em torno dela e, igualmente, pedir licença para que ela se transforme no seu instrumento de trabalho e de sobrevivência.

O índio não fere a mata ao buscar nela o seu alimento. A mata se entrega a ele, sob a forma de planta ou sob a forma de animal, como um jardim cria e entrega amorosamente uma flor ao seu cuidador. O jardineiro colhe a flor, o índio colhe a anta, a paca, a folha, a raiz, o peixe - o índio colhe... Essa a comunhão entre eles. A mata cuida do índio como o jardim da flor, o lavrador da planta, o criador do animal, o pai do filho, o Criador da criatura.

O ritual de licença aos animais e aos vegetais significa a relação do índio com o sagrado: o animal é sagrado, o grão e o fruto são sagrados, a floresta é sagrada. A vida é sagrada. A terra não é uma coisa, um objeto a ser usado, sugado, expropriado... a terra é Terra-mãe, é Mãe-terra. Tudo é sagrado... E, a vida, uma permanente celebração.

E eles entoam, então, uma oração de gratidão àqueles seres que serão abatidos porque, graças a eles, seus filhos e mulheres sobreviverão.

E uma oração em que dizem à vida que sabem e compreendem que eles próprios, também, um dia, serão o alimento da terra e de outros seres. E eu aprendo.

E, então, abençoados, colhem: uma pupunha aqui, a mandioca ali, a matrinxã acolá, uma paca do outro lado do grande rio. Colhem até que seus cestos contenham o que precisam para hoje. E, tendo obtido, então, o que necessitam para o dia de hoje, embarcam em suas canoas e retornam para casa, regressam para sua aldeia, para seus filhos.

Eles colhem apenas o que vão comer hoje. Eles não guardam para amanhã, eles não acumulam. Eles não sabem o que é isso. Eles desconhecem a propriedade privada, eles não têm, sequer, meios de conservação de alimentos. E, se eles não guardam e não acumulam nem o alimento, como haveriam de acumular outras coisas? Eles não precisam disso. Todo dia a mata lhes oferece o que precisam. Ela provê o que eles necessitam. Assim, se encontram uma árvore carregada de frutos, eles colhem apenas aqueles que comerão hoje. Se há uma manada de paca, de veados, de queixada, eles "colhem" apenas um ou dois, apenas o que precisam para hoje. Mesmo que eles saibam que amanhã a manada não passará novamente por ali. Eles não se afligem, eles não se perguntam o que comerão amanhã, embora nunca tenham e nunca saibam, hoje, o que comerão amanhã. Eles sabem que a cada dia basta o seu cuidado.

"A cada dia basta o seu cuidado - não vos preocupeis com a vossa vida, acerca do que haveis de comer, nem com o vosso corpo, acerca do que haveis de vestir. Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem ceifam, nem fazem provisões nos celeiros". "Não vos aflijais, pois, dizendo: que comeremos? Que beberemos? Não vos preocupeis pelo dia de amanhã; o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu cuidado". (Mt. 6.25-6.34).

Amanhã será um novo dia... e esse dia ainda não chegou. A cada dia basta o seu cuidado. A vida se chama Providência, eles sabem disso. Não há com o que se preocupar. Assim, eles não têm celeiros, eles são aquelas aves que voam livres nos céus, apenas contemplando, sendo encantadas e encantando.

E, como colhem tudo apenas para hoje, como não acumulam coisa alguma, a vida do índio é a própria expressão do cuidado com a vida. Como não "fazem provisões e como não têm celeiros", ninguém cuida da floresta melhor do que eles, ninguém tem mais carinho pela mata e pelos animais e peixes do que eles. Ninguém sabe como a terra, o rio, as árvores e todos os seres são sagrados, como eles sabem. Ninguém é mais cuidadoso e, em palavras modernas, mais ecológico e mais capaz de preservar do que eles. ...E eu vou aprendendo.

E, por isso, a floresta é pródiga com eles. Ela deita um galho de uma árvore para que eles possam colher o fruto, ela lhes encaminha um peixe e um animal para o sacrifício em razão da vida deles. A floresta lhes agradece todos os dias, em todos os momentos. A mata e o índio vivem uma feliz integração, uma relação de cuidados recíprocos e de harmonia.

E, assim, lá pelo meio da tarde, eles retornam do seu trabalho, nós os recebemos em suas canoas. E aí, como que um ritual, eles colocam, eles apõem tudo o que obtiveram numa mesa central da aldeia, a mesa que, não por acaso, é mesmo o centro da aldeia. Está claro o significado: é que o centro da sua vida é a fraternidade, a partilha e a solidariedade, isso o que significa a mesa no centro da aldeia. E, esse outro ritual que fazem, guarda dois significados que os seus filhos começam a aprender, como eles próprios aprenderam com os seus pais, e estes, com os seus antepassados. O primeiro é um agradecimento, é uma celebração à vida porque ela lhes ofertou aquele alimento - é o ofertório, preparando para a comunhão. Estamos vivendo a mística da mesa. O segundo é um ensinamento, que eles querem também passar para os seus filhos: tudo, tudo o que colheram na natureza está ali, ali colocado, ali exposto e disposto sobre aquela mesa. Com isso eles querem celebrar e ensinar a seus filhos: tudo é de todos, ninguém possui coisa alguma. Acho que eles nem devem ter os pronomes possessivos no seu vocabulário - ou apenas um: nosso. Tudo o que se produz pertence a todos. Ninguém guarda coisa alguma para si. Tudo é repartido. É hora da partilha. Não importa que aquele irmão não tenha ido à caça, à pesca, à roça, ele também receberá. Tudo está lá, lá na mesa, no centro..., lugar de se repartir o pão.

A partilha, a fraternidade, a solidariedade são os fundamentos da sua existência: quando a roça de uma aldeia fracassa, aquele povo pode colher na roça de uma outra aldeia, sem necessidade sequer de avisar ou de pedir.

E eu me lembro, então, de onde vivo, e fico a me perguntar se eu permito, a um irmão faminto, entrar em meu quintal e colher uma laranja. Será que eu sei fazer isso? E, então, eu sofro e me comovo por isso... Eu não sou como eles, eu não sei viver como eles. O seu modo de vida pode ser expresso numa frase: "Como eu posso estar bem se o meu irmão não está?". E eu me pergunto: estou aprendendo isso? Serei capaz de aprender isso?

E eu me sinto, de repente, então, perdido e confuso: onde estou mesmo? Eu viajei no tempo e me encontro a poucos dias da morte de Jesus, numa comunidade cristã primitiva? Estarei no meio dos primeiros cristãos?

E aí eu entendo porque um missionário escreveu algo que li quando fui me encontrar com eles, com esse povo incomum e admirável: "Eu vim para catequizar o ‘selvagem’ e ignorante, eu vim para evangelizar o índio, mas, ao conhecer a sua vida, eu percebi, eu entendi: não sou eu quem vai evangelizar o índio - ele é quem vai me ensinar, eu quem vou aprender o Evangelho com ele. Pois o Evangelho está nele, está na sua forma de viver, na sua atitude de respeito e amor diante da natureza e do outro. Está presente na sua própria vida, no seu dia-a-dia. Que o Evangelho não seja dissociado da minha atitude diante da vida, mas que ele seja essa própria atitude integrada em mim, como é integrada na vida do índio".

Os índios não lêem a Bíblia todos os dias, porque eles não sabem ler nossas palavras... Muito mais do que isso, eles vivem a mensagem e os ensinamentos de Jesus todos os dias, mesmo sem nunca os terem lido.

Essa, a espiritualidade maravilhosa daqueles homens e mulheres "selvagens" ou "ignorantes". Como a nossa civilização "cristã" tem a aprender com eles! ...Aprenderemos?


(*) Experiência narrada no livro:
Tawé, Nação Munduruku - Uma Aventura na Amazônia
Autor: Walter Andrade Parreira
Ed. Fumec.FCH e Ed. Decálogo, 2006
E-mail: walterparreira@gmail.com